Sobre moças de família e putas

O fato se deu no país do carnaval, em sua 20ª cidade mais populosa. Era dia do lançamento do Windows 7, mas os entendidos em informática aguardavam mesmo era o lançamento do Ubuntu Karmic Koala.

Neste dia – em plena Idade Média – uma universidade particular parou para insultar uma de suas alunas de PUTA, por ter comparecido às aulas com um vestido que os fiscais da moral e dos bons costumes consideraram indecente.

Após o episódio, a vítima foi a um programa sensacionalista na TV e se disse injustiçada, mas ao final reconheceu que teve sua parcela de culpa por ir à faculdade naquele traje.

A moça, que até então não via mal algum em exibir suas formas, agora titubeava entre o certo e o errado; entre o moral e o imoral; entre o bem e o mal.

Os agressores venceram; a vítima agora se sentia culpada de sua insolência.

Este também era o espírito da lei da época. A exposição de motivos da parte geral do Código Penal brasileiro de 1984 :

50. (…) Fez-se referência expressa ao comportamento da vítima, erigido, muitas vezes, em fator criminógeno, por constituir-se em provocação ou estímulo à conduta criminosa, como, entre outras modalidades, o pouco recato da vítima nos crimes contra os costumes. (…)

Muitos juízes, naquela época de repressão sexual intensa, reduziam a pena do réu no crime de estupro, se fosse comprovado nos autos que a vítima o provocara com suas roupas indecentes. É certo que alguns professores de Direito Penal se insurgiam quanto ao entendimento machista dominante, mas ainda levaria algum tempo para que os juízes aprendessem a separar o Direito dos seus preconceitos moralistas.

O linchamento moral da moça podia ser interpretado com um sacrifício catártico, tal como o do bode, com o qual os estudantes da universidade procuravam purificar o mundo das imoralidades que à época ameaçavam o “cidadão de bem” e à sua família.

Naquele tempo, muitos homens ainda dividiam às moças em “pra casar” e “pra trepar”. A nudez para eles era sempre muito bem-vinda, desde que fosse por eles solicitada e entregues pela mulher, tal como uma cessão diante de tão bons argumentos. A nudez ou a simples insinuação erótica de iniciativa exclusiva da mulher era a maior das transgressões, pois ameaçava a ordem patriarcal vigente.

Era um tempo confuso. A maioria dos homens e mulheres ainda estavam confortáveis em seus papéis de gênero, determinados pelo próprio Deus quando da expulsão do Jardim do Éden.  Muitas concessões já haviam sido feitas e o sexo já era até admitido antes do casamento; mas os papéis ainda eram respeitados pela maioria: a moça de família até podia ceder às súplicas masculinas, nunca sem antes fazer algum charme, mas àquelas que tomassem a iniciativa sexual, outro rótulo não lhes restava senão o de PUTA.

A execração pública da universitária do vestido curto foi vista pelos homens e mulheres de seu tempo como um radicalismo injustificado. A maioria acreditava que este tipo de comentário não deveria ser anunciado em alto e bom tom, mas de forma mais discreta, por cochichos nos corredores. Não discordavam da opinião dos universitários em si, mas apenas do modo radical como foi expressa, mais condizente com o comportamento dos bárbaros orientais daquele tempo que ainda aplicavam a pena de lapidação.

Um cronista da época ironizou muito bem o pensamento dominante da classe-média de seu tempo:

Sou contra isso que aconteceu na Uniban, mas acho que a moça tinha que ter a decência de escolher uma roupa maior, né?

Há uma sutil diferença entre a tolerância e o respeito. Naquele tempo, já se começava a tolerar as insinuações sexuais de iniciativa feminina, mas ainda levaria um bom tempo até que a maioria passasse a respeitar as iniciativas sexuais das mulheres e a vetusta distinção entre moças de família e putas deixasse de existir no inconsciente masculino.

 

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Atualização em 08/11/2009 às 12h30: Historiadores descobriram recentemente um documento que comprova que a aluna vítima das hostilidades foi expulsa da universidade e que os agressores foram suspensos das aulas. Os estudiosos ainda estão em dúvida de como interpretar o documento recém descoberto. A maioria acredita que era costume da época punir as vítimas com penas maiores que as de seus agressores.

47 comentários em “Sobre moças de família e putas”

  1. Acredito que levar o centro da discussão sobre a selvageria para as roupas da garota talvez não explique muito, uma vez que restou provado que não era tão escandalosa assim. Pela entrevista da Geyse/Geisy (não descobri qual o nome correto dela, ainda) condedida a Record, e depoimentos de colegas de faculdade, o que fica evidente é que a garota parece ser bastante arrogante, com vários episódios relatados de provocação às demais colegas e insinuação aos rapazes. Não justifica, evidentemente, nenhuma barbárie igual ou semelhante, mas, convenhamos, a UNIBAN não reúne o escol da sociedade pensante paulistana. É uma faculdade frequentada por pessoas de educação bastante precária, o que ficou evidenciado pelos atos perpetrados, dignos de terem acontecido numa penitenciária.

  2. Bom, de acordo com o Vinícius (autor do comentário anterior) deve haver alguma coisa muita errada comigo, pois eu adoro mulheres insinuantes. Pelo que entendi, o Vinícius e os rapazes da Uniban, não.

    O Vinícius admite que a roupa da moça não era tão escandolosa. E se fosse? Aliás, como se mede uma roupa escandalosa? Até quantos palmos acima do joelho pode uma “moça de família” usar?

    Tenho medo do que o Vinícius chama de “sociedade pensante paulistana”… Segundo ele, os alunos da Uniban são “pessoas de educação bastante precária”? Bom, a moça foi pra faculdade de ônibus, com aquele mesmo vestido, e nenhum dos passageiros, nem o motorista, nem o cobrador, tentou estuprá-la ou linchá-la. Donde posso concluir que a sociedade pensante paulistana é o povão que anda de ônibus.

  3. Sobre o comentário de Vinícius; típico médioclassista, segregário, rotulador e preconceituoso.

    “a UNIBAN não reúne o escol da sociedade pensante paulistana”

    realmente as escol da sociedade paulistana somente massacram os seus “bichos”, as meninas são embriagadas e abusadas sexualmente e os rapazes agredidos e jogados na piscina (que pena que não sabia nadar né?)

    “dignos de terem acontecido numa penitenciária.” se vc conhecesse alguma, saberia que do respeito que eles tratam as mulheres (mães, irmãs, esposas) que são as únicas que se importam (exceto esse pessoal dos Direitos Humanos)

    Selvagem é o seu comentário! Conan ficaria orgulhoso.

    e Túlio, parabéns, ácido como sempre!

    Abraços

    Lucas Laire

  4. Ele (Vinicius) foi prepotente em relação a uniban e preconceituoso em relacao a penitenciaria.

    Só quem, por algum motivo conhece ao menos uma penitenciaria, sabe que isso nunca aconteceria. Impossível. As pessoas que nao estao envolvidas com esse mundo costumam fazer essa analogia de cadeia com falta de respeito e educação por falta de conhecimento.

    Mas pra mim ele deixou claro pensar que nem o vestido (achando curto ou não) e nem o comportamento da menina (que ele não conhece) justificam tais atos covardes de intolerancia.

    Pra mim é óbvio. Medo de mulher. Para eles mulher com pouca roupa ou sem, só se estiver dando pra eles.

  5. Vamos partir do inicio: Alí houve um caso simples de Pré – CONCEITO. Porquê?

    Os gurdiões da moral e bons constumes, baseado na definição do que é conceito: idéia, opnião. Representação de um objeto pelo pensamento por meio de suas características gerais. Interpetração da experiência.

    Partiraram para o Pre – conceito, só que de maneira vil e cruel, unido as expressão. Pelas roupas que a moça usava, achavam que ela era uma daquelas que ganha a vida fácil, sem ser, e talvez aquela amiga de um deles com a calça Diesel, bolça Hermés e camiseta Lacoste bem recatada fosse a verdadeira PUTA e ele sequer notasse, afinal, era uma garata recatada, que não mostra os atributos e nem usa um pano de 2 cm cobrindo as partes.

    E resolveram fazer daquilo um circo, ou seria melhor um hosipicio?
    A moça tirou a lasquinha dela, está aproveitando os 15 minutos de fama,aparecendo em qse todos os programas de TV em rede nacional, e, quem sabe? Receba um convite pra ser a capa de alguma revista masculina?

    A única coisa coisa que sei, que não podemos julgar ninguém pelo que veste, pelo carro que tem, pelo que aparenta ser. Qdo vc aponta o dedo para alguém tem outro apontando em sua direção. Só espero que esse triste episódio tenha servido de lição para alguma coisa, ou talvez não, talvez venha nos mostrar que nunca saimos da idade média, que todo esse liberalismo não passa de hipocrisia barata.

  6. Como em pleno século XXI o chamado “homem moderno” age como se fosse um medieval.
    A ideia de país livre,foi repreendida através do manifesto de vândalos.Já que será assim a visão do tipo educacional em nosso país, a educação de vândalos.
    Quem deve julgar o que é imoral deve ser aquele cujo seus deveres de cidadania estão em dias,incluindo o de não jogar o lixo na rua,obedecer a sinalização e silenciar-se após às 22h e, principalmente não terem filhinhos ou serem eles uns “drogadinhos”.
    A moça pode ter errado na forma de vestir-se,mais isso não é contra a lei,e na minha opinião,nem contra os costumes. Acho que imoral é fumar um “baseado” no pátio ou dentro do banheiro da faculdade como muito ocorre.

  7. Rapaz, eu não consigo deixar de ver a roupa curta da moça como uma coisa totalmente positiva.

    Não é falha nenhuma ela usar aquela roupa curta. De mais a mais, a roupa nem tão curta era.

    Eu não consigo entender como esses meninos dessa faculdade viram problema nisto.

    Na minha época menina de roupa curta não era problema, era solução. Todo mundo olhava, todo mundo achava ótimo, quem acabava namorando com a moça era um felizardo.

  8. Bem, esses garotos devem ser daqueles que ainda pensam que “fulana” é pra casar e sicrana é para trepar…
    velho pensamento antiquadro.
    Sim, pq meninas de bem são reservadas, não gostam de sexo e por ai vai. Tb não gostam e nem podem usar roupas curtas, pela moral e bons costumes…O q tem de mais imoral? Usar um vestido curto ou usar drogas, comprar drogas,beber e dirigir?
    São reflexos de uma sociedade q está mais preocupada em mostrar status do q fatos. Isso é só a nossa “crasse média”, minha gente!

  9. Ainda estamos discutindo a expressão da sexualidade feminina. Vamos novamente a caça as bruxas? Tanto discurso sobre a lei Maria da Penha, que apenas solidifica a “penalidade” na violência contra a mulher, cometida por homens. Perdão. A indiscriminação possivelmente tenha passado pela cabeça das mulheres da UNIBAN e a violencia, contra a loira, partiu de lá, de mulheres que não usam vestidos curtos e violentam muito! Nada aconteceu que pudesse evocar a ira masculina. É a falta de respeito do gênero feminino por ele mesmo! Triste demais. Tínhamos de nos proteger. Sou mulher, nem maschista nem feminista! Apenas mulher.

  10. Os que reclamaram da indecência dela são pessoas que agiram como crianças, agiram contra algo que não cabe a eles decidir.Creio que falar se uma roupa é imoral ou não vai de opnião e conceitos, mas o que não se poode é coibir alguém pois usa uma roupa mais curta.Ela tem o direito de fazer isso, não há nenhum conceito de medida de ropas e dec~encia, apenas o senso comum.
    Acho que mais uma vez a justiça cegou e deixou o senso comum julgar alguém que se quer merecia ser julgada, pois estava no seu direito de se vestir como queira, pois não se pode negar que a moça estava vestida, e isso é legal, não há leis para regulamentar o tamanho da roupa, apenas as que pedem que use-a em certo locais.
    Concordo com o autor, me sinto na idade média, mas o pior é que a noção de o honra e honestidade daquela época foram apagadas para dar lugar a malandragem, corrupção e egocentrismo humano.

  11. puta pode ser sinonimo de profissional do sexo.

    E se realmente fosse? Qual é o problema a ponto de ser linchada?

    Parece até aquela história da maria madalena, shaisuha

  12. imagino que há muita paranóia girando ao redor disso tudo. foi um momento de histeria coletiva, uma coisa puxando a outra, quando foi-se ver, já era aquela zorra toda. não sei se o fato significa tanto quanto se fala.

  13. Pessoal, essa da roupa curta é história pra boi durmir.

    Provavelmente aconteceu alguma coisa fútil antes. A menina pode ter ficado com o carinha de outra menina que organizou aquela putaria toda.

    Ou foram soltando boatos sobre a profissão da menina do vestido até o consciente coletivo da uniban acreditar que ela era profissional do sexo.

    A questão é: E se realmente fosse prostituta, mereceria linchamento? Que tal aqueles linchamentos da Idade média, com tochas e foices…

  14. Como bem dito, típica manifestação feitas pelos homens de bem e mulheres honstas, controle penal informal da moral e bons costumes.
    Se fosse a Gisele Bündchen a usar o mesmo vestido as manifestações seriam pela idolatria, como bem fazem os homens de bem e as mulheres aos domingos quando veem as danças dos famosos em trajes sumários no faustão ou o desfile de moda de modelos anoréxicas seminuas na novela das 8 (que passa às 9h).
    Que mundo é esse?
    Execelente artigo.
    Abraço,
    Daniela

  15. É muita hipocrisia das mulheres e dos homens que agrediram a garota, pois em cada esquina das cidades brasileiras existe uma banca de jornal com poster da famosa do momento seminua em alguma revista de “mulher pelada”, além dos programas de televisão que esbanjam nudez e apelo sexual e que qualquer criança tem acesso.
    A garota ser arrogante ou puta (o que é uma denominação machista) não dá o direito dela ser xingada, ameaçada e humilhada. E o que as pessoas tem que ver com a roupa dos outros? Ainda mais em um local em que só há adultos.

    Ótimo texto, Túlio.

  16. Rodrigo Aguiar, pode ser até que se trate de uma histeria coletiva passageira, mas realmente tem que falar, reclamar, combater, pra nao parecer que a gente acha tranquilo que no país da Globeleza nua às dez da manha por tres meses uma menina que mora em Sao Paulo tenha que passar por isso.
    Que bom que ela pode capitalizar em cima, mas…

  17. Tulio,

    Por acaso acessei seu blog, e nenhum dos textos que eu havia lido até agora sobre o caso da menina da Uniban tinha refletido com clareza o que pensei. O fato de você escrevê-lo como se fosse um relato histórico do nosso tempo faz com que ele ganhe peso, afinal, um caso como esse só poderia ter acontecido no passado.

    Fico triste em ver quantas pessoas ainda demonstram o pensamento machista, mais ainda que isso ainda é fomentado pelos veículos de comunicação. Passei pela sala no domingo à noite, na qual meu pai assistia ao Fantástico, e uma (teoricamente) sumidade em comportamento dizia que a roupa dela era realmente inadequada, mas que não justificava o ato e tal, ou seja, a mesma opinião desse sujeito, de que moças de família não devem usar roupas decotadas, entre outras coisas do gênero… O pior que um pensamento parecido com esse eu tive que escutar de um cliente, em plena sala de reunião, e como me doeu não falar tudo isso que você disse… calada não fiquei, mesmo assim, porque não consigo…

    Enfim, obrigada pelo texto. Acho que não teria escrito tão bem sobre o assunto.

  18. Esse episódio foi terrível. Mais um passo em desrespeito à imagem feminina. O próximo passo, aguardem, será a Geisy em alguma revista masculina. Não deve demorar…

  19. Isso me lembra de quando, novinha, fui beliscada em um bar. Quando virei para tomar satisfação o loser me diz abre aspas ipsis literis “e veio de saia porque?”
    Linha tênue esta que separa um homem desses de um macado, verdade?

  20. Na minha adolescência, não foram raros os professores que repetiam à exaustão o tal argumento manco :”ela PROVOCOU”.
    Fico me perguntando qual a aproximação – aparentemente tão óbvia para eles, entre sexo e violência – porque penso que se ela desejou “provocar” algo, foi desjo, atenção, olhares e até cantadas. Porque, necessariamente, essas ações seriam paralelas aos berros, agressões e/ou tentativas de estupro? Só em cabecinhas bem doentes.
    Aliás, acho que é preciso pensar que a vítima pode não ser “santinha”, ela não precisa estar dentro de nenhum padrão de conduta moral para ser vítima: se foi agredida, sendo ou não “puta”, continua sendo vítima. Não é?
    Esse caso todo me enoja.
    Belíssimo texto.

  21. Super interessante!
    Sou aluna do curso de comunicação social e em uma das disciplinas estamos fazendo uma Campanha sobre quebra de estereótipos, chama-se NU-dispase dos rótulos e gostaria de saber se podemos publicar um trecho desse artigo em nosso blog. com os devidos créditos, obvio.

    Abraços e parabens!

  22. A despeito da seriedade do assunto, faço a ressalva para Lucas Laire: poxa Lucas, o que o pobre do Conan tem a ver com isso! 🙂 Sendo a historiadora chata, lembrem-se: Barbaro é como o império romano referia-se aos outros povos e associar uma atitude retrógrada com a época medieval é comprar o discurso da era moderna e dos defensores do absolutismo.
    Pronto, vou parar de ser chata

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